sábado, 10 de agosto de 2013

O escorpião na primeira pessoa

Penso em escrever. Penso. Preparo um café, sento. Penso. Uma ideia. Várias ideias. Não, isso não, apago. Sim, isso claro que sim! Deixo e leio de novo. E sorrio de novo. E me encanto de novo. E quero que alguém também goste daquilo, e escrevo mais, e me divirto mais.

O tempo passa e penso de novo em escrever. Penso. E o café me prepara para falar, quase sempre de mim. Falo de mim porque quem convive comigo sou eu. Quem se encanta e se ri com bobagens sou eu. Mas falar dos outros também é bom. Aliás, é até melhor. Escrever na terceira pessoa causa mais polêmica do que na primeira. Já achei que isso tava errado, melhor seria não se envolver com isso. Sério. Pensei e até apaguei por causa das polêmicas. É a parte do não, isso não.

Mas é a natureza, a natureza é assim. Veja o escorpião. Ele está em perigo. Você vai lá ajuda-lo, o livra de uma queda, coloca-o de novo a salvo e ele, em forma de gratidão, te pica. Mas que ingrato! - dizem uns. Ou, mas por que foi ajuda-lo?! - perguntam, inconformados, outros. "- Mas é que a minha natureza é a de ajudar, e a dele é a de picar...". E, como dizem os baianos, pronto! É isso. Sou como os cavalos que quando picados vão à frente, com mais vigor, mais ímpeto. Mas também sou escorpião. Não com os que me ajudam, nunca. Mas também sei picar. Tenho veneno. E isso fere, dói. Mas é bom. Me defende, e pra viver nesse mundo é preciso saber se defender.

O escorpião se defende atacando, e atacar também é uma forma de defesa. Trágica, muitas vezes, mas de proteção. Se feita com os outros, é ataque. Se feita consigo mesmo, é tragédia. Lembro dos poetas. Não sei se por coincidência, acho que não, mas poetas morrem quase sempre aos domingos. Manuel Bandeira morreu num domingo. Eu não sabia - soube ontem - que o Camilo Castelo Branco se suicidou num domingo, por volta das 15:15. Os escorpiões também atacam a si mesmos e nem por isso são maus consigo. O próprio Camilo, por exemplo, certa vez ficou incomodado e se vestiu de suicida (o que viria a ser de fato tempos depois) e, no momento em que sua alma subiu à presença divina, indagou ao próprio Deus o porquê de ter sido tirado do ventre materno. Veja que coisa. É poético, mas até um pouco sem sentido. Chegou um domingo e, após um tiro na têmpora, Camilo se picou e morreu com o próprio veneno. Hoje a expressão "camiliano" é sempre usada para algo que é trágico, por esse motivo. É um enredo camiliano.

Esse texto, por exemplo. É isso sim. Mas podia ser não, isso não. Tô na Europa há um mês e tenho saudades do Brasil. Mas logo penso nas picadas que preciso dar diariamente para me defender e o balão que simboliza a imaginação, em cima da minha cabeça, explode. Portugal é muito bom, é bom demais, me sinto bem aqui. Mas pensando bem, o escorpião é um invertebrado discreto e noturno, o que não sou muito. Assim, mais um motivo pra lembrar do Brasil e falar na terceira pessoa. Aliás, na primeira também, quando eu lá estiver.

sábado, 8 de junho de 2013

As folhas amareladas e aquele cheiro indescritível

O dia amanheceu chuvoso, com aquela chuva fina que precede um bocejo seguido de um leve sorriso. Estar só tem suas (poucas) vantagens, tem a coisa da contemplação, do olhar pra dentro e se perceber cheio, ao mesmo tempo que se olha ao redor e ve-se o vazio. Sentei à mesa depois de um café pequeno e lancei o olhar sobre sua superfície repleta de livros e escritos, numa espécie intuitiva de que aquele caminho seria longo. Prazeroso, mas longo. Não existem coisas mais saborosas do que os prazeres longos!

"- Correios!". Aquele grito que chegou baixinho ao primeiro andar me fez descer correndo as escadas, quase até tropeçando. Isso porque eu já tinha olhado pela janela e visto um pacote amarelo nas mãos do entregador. Era ele! Sou nostálgico, seja isso uma virtude ou um defeito, gosto demais das coisas antigas. Sei lá, vivo sempre quase tudo de novo, e de novo.

Como tinha sido o mesmo carteiro que me trouxe os últimos dois livros na semana passada, agradeci e, ao mesmo tempo, em tom descontraído 'reclamei' por ele não ter me dado tempo de ler aqueles e já estar me trazendo outro. Ele sorriu, eu assinei o recebimento e naquela hora passou um filme na minha frente. Lembro que quando tinha 13 anos tive uma namorada que morava em outra cidade. Éramos crianças e, como não existia esses 'estraga-prazeres' de e-mail, whatsapp e nem celulares, nosso único contato era por cartas. Não me lembro quantas tardes passei a espera de Cícero, o carteiro que me trazia aqueles beijos em forma de papel. Era gostoso, chegava a durar dias, imagina! Esse é o defeito da tecnologia e seu galopante avanço, perde-se o efeito surpresa. Perde-se charme, devaneios, criatividade. Grande parte do que era fruto da imaginação se perde. Antigamente o que se imaginava e nunca chegava a existir chegava a ser maior do que se chegava às mãos. Tanto é assim que nunca havíamos dado sequer um beijo e as sensações eram diversas. Tudo criado pela imaginação. Ah, começamos e acabamos por cartas, sendo inúmeras nos 3 meses que ficamos juntos (separados!).

Abri o pacote cuidadosamente ainda nas escadas. O estado do livro era impecável! Mesmo sendo uma edição de 1984, aquele colecionador tinha muito zelo - o que já havia sido atestado por um amigo nosso em comum que o recomendou. Na contracapa uma assinatura e uma data: "Carlos Antonio - 23/01/87". Aprendi isso com um amigo advogado de Florianópolis. Ele registrava seus livros como registram-se filhos. Com data de nascimento, local e direito a batizado. Acho isso de um charme sem tamanho! Bacana né?! Minha imaginação, que já estava tão distante, foi remetida à 26 anos atrás. Que coisa intrigante, aquele mundo passou tanto tempo esperando que eu o descobrisse, quando o Carlos Antonio já havia pisado aquelas terras há tanto tempo! Por isso que eu acho um misto de arrogância e prepotência dos colonizadores dizerem que descobriram algo. O Brasil, por exemplo, já tinha sido desvirginado pelos índios, antes de ser estuprado por portugueses - que passaram a se intitular maridos por imaginar ter rompido o hímen, que já não era nada inelástico. Mas isso é outro assunto.

A verdade é que penso como o Jojen Reed, que disse certa vez que "um leitor vive mil vidas antes de morrer, enquanto que o homem que nunca lê vive apenas uma". Por vezes me pego sorrindo sozinho quando estou lendo. Me sinto maior, pois quem lê cresce em silêncio. As folhas amareladas e aquele cheiro indescritível são de uma magia que não é desse mundo. Livros não são desse mundo. E ainda levam o leitor pra outro, mas isso dava assunto pra um livro. Melhor, para outro livro.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Um poeta e o mar de livros

“Carobene tinha razão: ali, de fato, era outra coisa. O calor estava violento também em Augusta mas, sem a reverberação dos muros, provocava não mais uma prostração bestial, mas uma espécie de leve euforia. O sol, perdida sua garra de algoz, limitava-se a ser um risonho doador de energia, apesar de violento. E também um feiticeiro que emoldurava diamantes instáveis em cada uma das leves ondas do mar. O estudo não era mais fadiga. Ao embalo ligeiro do barco onde permanecia longas horas, cada livro não me parecia mais um obstáculo a superar, mas a chave que abriria a passagem para um mundo cujos aspectos mais fascinantes estavam diante dos meus olhos. Frequentemente ocorria-me recitar em voz alta versos de poetas e os nomes dos deuses esquecidos, que quase ninguém conhecia, e que roçavam outra vez a superfície daquele mar que, antigamente, ao ouvi-los, levantava-se em tumulto ou aplacava-se em bonança.”

(Giuseppe Tomasi Di Lampedusa, em "A Sereia".)

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Gestos tão pequenos, coisas fáceis!

É tempo de festejar, de se alegrar! Uma ligação - que podia me trazer uma notícia qualquer, como tantas que recebo durante o dia todo - me deu a notícia direto de São Paulo que o meu amigo Xyko Oliveira recebeu alta e foi pra casa, esbanjando energia. Como um valente volta de uma guerra, ou um atleta volta vencedor.

Hoje, como num lampejo de uma descoberta, me dei conta que tenho saúde, oportunidades e sonhos, e que de poucas coisas a vida me privou. Isso pode soar poético, mas quero que seja o mais real possível. Deus não é apenas bom, porque se só o fosse eu teria apenas o suficiente. Mas é além disso, tenho o que preciso e mais, mais até do que mereço. A paz vem, acalma e não se sabe o motivo. A vida tem dessas coisas, e já experimentei de muita coisa assim, mas tenho apenas dez insuficientes dedos nas mãos pra conta-las todas. Um rim pode ser útil, mas não imprescindível como o coração, por exemplo. Tenho amigos que não são rins, mas corações. Alguns até já perdi, e a vida parou até de bater um pouco, mas - como tinha que ser - segue seu rumo. O corpo acaba experimentando sensações e você sente que aqueles 'corações' que se foram, na verdade continuam a bater, e a bater forte. Só mudaram de lugar, estão agora no meu.

O Xyko mesmo com pouco tempo (e sem saber!) me ensinou com sua vida, e tenho um carinho especial por quem me ensina alguma coisa. E melhores são as coisas simples, vindas dos gestos simples. Quantas pessoas se privam de fazer o bem com uma palavra doce, um gesto de afeto, tantas maneiras afáveis existem! Mas não se espera isso de todos, é preciso ter pra dar. Não se tira de um poço a água que ele não tem. A dureza no coração só faz privar de coisas boas quem a tem. É um bumerangue às avessas.

Mas ele fritou um peixe pra mim, numa fria noite em Curitiba e ali me mostrou as mãos, nuas de esconderijos. Como num verso de Leminski. Como num gesto sem segredos.

"ler se lê nos dedos
não nos olhos
que olhos são mais dados
a segredos"
(Paulo Leminski, "Toda Poesia", Cia. das Letras)

O Xyko é gente rara, e por muito tempo ainda o será.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Pronto pro imprevisível


Apesar de nascer com algumas certezas, vivi anos aqui pensando muito, olhando pra dentro de mim mesmo. Ouvi muitos silêncios (e como tem-se silêncios por aqui!). O silêncio do sol forte, todo dia, de milhares que saem pra trabalhar, de tantos que não desistem nunca. Por isso acho que dizem que o nordestino é uma gente forte. Alíás, sou canceriano, nordestino e ainda consigo me encantar com as pequenas coisas da vida. Ou seja, um bobo quase que por completo! O encanto de novos amigos, de uma nova ideia, de um velho livro que nunca foi lido, da surpresa de uma criança.

Queria falar sobre coisas novas e coisas antigas. De surpresas e de certezas. Melhor do que fazer novos amigos ou se rir com os velhos, é se abrir ao novo e ainda se surpreender fazendo novo cada encontro com os velhos. É preciso estar distraído e pronto pro imprevisível! Veja só, sempre falam de sorte, posso até dizer que tenho sorte, e acho mesmo que ela existe e sempre me encontra a sua espera. Eu conto com a sorte como conto a vida, acho intrigante pensar assim. Se desvencilhar dos mesmos caminhos, dos velhos moldes, das mesmas velhas formas prontas de sucesso, da velha opinião formada sobre tudo.

Um novo mundo se abre a cada dia, a cada manhã. E despertar embriagado em tempos de pessoas sedentas depende mais das respostas que me dou do que das perguntas que me fazem. Depende de mim. Eu tava com saudade de deixar essas pegadas com o rafadesapatonovo, tava mesmo. Não fossem os estímulos e os incentivos que recebo, até em forma de provocação, talvez eu pisasse até menos aqui. Esse blog conta os melhores anos da minha vida. Conta o dia em que conheci até o dia que eu perdi amigos. Conta como e quando começaram vidas e quando o silêncio foi maior do que elas. Me encontro refeito, em pé e incólume mais uma vez. Voltar aqui me faz bem, muito bem.

quarta-feira, 20 de março de 2013

O que vale é o sentimento, e o amor que a gente tem no coração...




Chovia um pouco e naquela fria tarde de sexta-feira, como em todas as outras, fui almoçar num restaurante perto de casa. Curitiba enfrentava um inverno forte em 2009 e poucas coisas na vida são mais solitárias do que frio e chuva simultâneos. Nesses dias, o Tropo Buono era o meu lugar favorito. Além da culinária caseira e acolhedora, Lala e Cris sempre me tratavam tão bem que, por vezes, cheguei a ir pra lá só pra conversar e tomar um café. É o único restaurante que eu conheço que tem biblioteca, gente inteligente e boa comida. Naquele dia fui tarde, eram umas duas e meia. Entrei com pressa e sentei de costas pra uma única mesa ocupada por três pessoas.

Lala era Laís Pires, conhecida produtora artística carioca que, assim como eu, foi parar no Paraná por essas coisas que quase nunca entendemos bem. Falávamos sempre de música, arte, cultura e da cena popular brasileira. Ela, mais do que eu, tinha muita história pra contar. Tinha sido responsável por levar vários artistas aos Estados Unidos, já havia excursionado e produzido Leny Andrade, Beth Carvalho e tantos outros nomes. Lala, ao saber que eu era pernambucano, sempre me falava do Romero Lubambo, violonista cuja família morava em Recife, quando engatamos a primeira conversa e nunca mais paramos. Falando dela me dá vontade de chorar, de tanto carinho e saudade.

“- Rafa, vem cá. Quero te apresentar um amigo meu”, veio ela até minha mesa e me puxou, ao ver que eu já tinha terminado o almoço. “Então, esse aqui é o Emílio... Rafa, Emílio. Emílio, Rafa”. Ah, por isso! Eu bem conhecia aquela voz que ria e falava na outra mesa, mas não seria indiscreto de olhar pra confirmar. Desde criança eu já era fã de Emílio Santiago desde que ouvi as famosas Aquarelas. Já tinha ido a um show dele no Teatro Castro Alves em Salvador e sabia um pouco da sua história também. Cumprimentei-o com uma boa tarde e saudei os demais que estavam na mesa.
“-Olá, Emílio. É um prazer, uma honra. A Lala já tinha me falado de você”.
“-Ah, é?! Mas com esse sotaque, você não é daqui, é?! Lala, pega um café pro Rafa!”, tratou logo de me deixar à vontade e pediu pro Soca, secretário dele, puxar uma cadeira. “Obrigado” – agradeci e sentei ali por umas duas horas.

Emílio tinha ido fazer um show com a Áurea Martins no Teatro da Caixa. Eram três dias de espetáculo, sexta, sábado e domingo. E o carinho que ele tinha por Lala era uma coisa linda de se ver. Ele tinha disso: se gostasse de alguém, elogiava em público até deixar com vergonha. Outro dia, em um show em Recife, me apresentou ao Lenine e foi rasgando elogios sobre a minha atuação profissional, de coisas que eu nem imaginava que sabia de mim. Acho que foi uma das vezes que fiquei mais vaidoso na vida. O normal seria o inverso! Mas era assim também que falava da Lala. Não era pra menos, ela o levou pela primeira vez à Nova York, lugar que, de tanto gostar, até apartamento acabou comprando por lá tempos depois. E era bonito de se ver como ele gostava dela. Não pude ir na sexta por compromissos acadêmicos, mas como ele me convidou para os outros dias, apareci no sábado e no domingo. Depois fomos todos a um bistrô e, quando voltei pra deixa-lo no hotel, recebi um DVD que já estava dedicado. Tenho guardado aquele momento tão vivo que parece que foi ontem.

De temperamento forte, mas capaz de uma generosidade rara, Emílio era capaz muitas vezes de adivinhar a melhor hora das coisas. Não nos falávamos há uns três meses quando, certa vez, me ligou umas 11 horas da noite: “-Pernambuquinho, como você tá? Como andam as coisas por aí? Vi que o tempo em Curitiba está frio, se cuida hein!”. E estava mesmo frio, uns 4 graus. E aquela lembrança dele, em breves dois minutos de conversa, foi certeira. Outra vez ele foi fazer um show em Porto Alegre e antes passou em Curitiba. Peguei-o no aeroporto e fomos almoçar em Santa Felicidade. Quando estacionei o carro, veio um garotinho pedir comida pra família e, depois de ajuda-lo, começou a me contar uma história. Disse que um dia foi fazer compras em um supermercado no Rio e na saída uma criança pediu algo pra comer. Aquilo mexeu com os brios dele de tal forma que retornou com o moleque ao supermercado, encheu um carrinho com caixas de leite e outras coisas e o colocou num táxi para levar até em casa, provando existir a sensibilidade no homem como existia no intérprete. Contando-me isso foi às lágrimas, e me levou junto também. Dentre tantas outras milhares histórias, que não caberiam em um livro.

Outra vez, depois de um show, a produção do evento fez uma passagem pra chegar até o carro que evitava o público. Ele soube e fez o inverso, procurou a saída que passava pelo público. Lembro-me de ter tirado pra lá de cem fotos. Tinha adolescente de 14 e idoso de 70 anos cantando e dizendo admira-lo. Quem não deve ter gostado foi o motorista, já que precisou enfrentar a multidão pra que entrássemos no carro...
Emilio tinha o jeito do Rio, o jeito da noite carioca, de Copacabana. Já me confessou que só moraria em outro lugar que não Botafogo, onde morava. E era Copacabana, mas tinha que ser na Atlântica. Senão nada feito. Pra mim, um dos shows mais clássicos e épicos da história da música brasileira é o dele no Copacabana Palace. Não tem nada mais carioca, nada mais brasileiro do que Emílio Santiago cantando em Copacabana! Lembro ainda que, por motivos profissionais, só pude chegar à São Paulo na tarde da gravação do último DVD dele, o “Só Danço Samba”. Fui direto pro Citibank Hall, mas nem me preocupei quanto a perder alguma coisa. Com ele era tudo ao vivo, na hora. Não tinha cerimônia de gravar e refazer não. Conversando com o Zé Milton (que dirigiu e produziu aquele show) já depois no camarim, perguntei se tudo tinha ido bem. Ele disse, sorrindo: “Com esse aí? Já tá pronto!”. Almoçamos na tarde seguinte no Copan e, brincando, disse que eu achava que precisaria refazer a faixa 5 (não sabia nem qual era a faixa 5!). E ele, de pronto, perguntou se a gravação do DVD que eu tinha ido tinha sido o dele! Tinha uma alma incomum, de artista. Os olhos dele brilhavam pelo palco, e ele sempre brilhava no palco. O The New York Times o elegeu como uma das maiores vozes de todos os tempos, ao ponto de dizer que a voz de Emílio era mais suave e profunda que a de Nat King Cole. Imagina! A coroação de uma carreira trilhada passo a passo, desde os festivais de música e do programa de Flávio Cavalcanti até os críticos norte-americanos e o Grammy Latino. Uma história maiúscula, do tamanho do seu talento!

Enfim, em outro patamar ele sempre esteve, aquela voz nunca podia ser desse mundo. Poucas coisas nessa vida inexplicável são suficientes pra mim e ter convivido e ser amigo do Emílio é uma delas. Guardo, como se gravado estivesse, sua voz há 19 dias atrás no telefone: "A vida é bela, Rafa. Só nos resta viver!". A sensação de perda é tão grande que não consigo expressar em palavras. Aliás, não conseguirei expressar em nada. Nem em tantas palavras, nem em meias palavras. Anoiteceu, Emílio. Sem você por aqui, agora olho pro céu e vejo como é bom ver você entre as estrelas na escuridão. Sua voz inconfundível agora é ouvida pelos anjos, que esperavam você voltar. Hoje o céu é Saigon.
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Emílio Vitalino Santiago, saudades eternas.
* 06/12/1946
† 20/03/2013

quarta-feira, 6 de março de 2013

Regra e exceção

Na exceção está a graça da vida. Escrevo pra todos e quero ser lido por muita gente, mesmo não sendo essa a minha maior intenção quando me ponho a discorrer sobre a vida. Confesso que alguns me leem como as multidões leem as estrelas, de modo astrológico, e não como alguns letrados que a veem de um modo astronômico.
 

Para não repetir os monossílabos de tantos livros expostos por aí – acho que por ter sido alfabetizado de maneira popular e muito pouco erudita – prefiro as exceções. Explico: acho que alunos que sentaram nas primeiras filas da sala de aula gostam menos de mim do que aqueles do fundo. Ali é que se vivia intensamente o dia a dia escolar, a malícia do mundo, a verdade das coisas. Líamos (e aqui me coloco entre eles) o bê-á-bá mais leve, éramos sempre mais sutis nas perguntas, íamos além do que se queria indagar. Nem sempre a pergunta era só relativa à matéria – o que chegava a deixar o professor sem resposta, já que este às vezes pouco sabia além daquela matéria que lecionava, ou do assunto que expunha. Coincidência, ou não, foram esses meus amigos que se tornaram grandes profissionais, pois em certo momento o mundo exigiu menos disciplina e mais experimento. Ah, mas todos – sem exceção – se deram bem na vida (mesmo sem saber ao certo o que é esse “bem”, repito o que os pais falam quando se referem a nós).


Gosto também das exceções no amor. Lembro bem de um exemplo que sempre me vem à mente quando falo disso. Lucila sempre esperou de maneira submissa a chegada do seu grande amor e tinha a convicção que ele chegaria de repente. Esse era o seu grande sonho: estar caminhando na praça, junto à sua amiga, e ser surpreendida com um cortejo do seu amado, que a colocaria em cima do seu cavalo e a levaria pra bem longe dali. Tomariam um café, ele a falaria coisas bonitas e a deixaria em casa, incólume, com encontro marcado para o outro dia e a promessa que seriam felizes para sempre. A mãe dela pensava diferente: queria que se casasse com o Quinzinho, filho do Joaquim da mercearia. Esse sim era um bom partido. Possuía estirpe, curso de datilografia, estava prestes a terminar o curso de Licenciatura em Geografia e era até, digamos, bonito (essa é a pior parte da descrição, com um teor extra de piedade, pra não dizer também que o rapaz era só esforçado). Lucila nunca se viu casada com ele, mas o tempo passava e nada do cavalo, da fuga, das promessas. Já prestes a largar o sonho pela realidade por conta da comodidade (como se fazem essas trocas por aí!), ela decidiu que não se curvaria ao sono do destino que insistia em esconder o seu amado e esperaria o tempo que fosse. Para ela, nada seria mais triste do que estar com o Quinzinho quando o grande amor da sua vida aparecesse e não a pudesse levar consigo. “-Deixa de bobagem, menina. Só você que não vê que a vida é aqui!” diziam alguns, em tom desanimador. “- Case-se com ele, serão felizes, ele a ama tanto que fará você sentir o mesmo por ele, questão de tempo...” reforçavam outros ainda mais conformados com a dinâmica da vida. Lucila bateu o pé. Como uma exceção (e eu gosto das exceções, repito), insistiu e viu o Quinzinho se formar, arranjar um emprego, se casar com uma amiga de infância e ter com ela três filhos em quatro anos. Dizem até que a garota casou grávida, de tanto que queria se casar com aquele partido. Lucila preferiu ficar só, a expectativa daquele amor distante e difícil era melhor do que a realidade morna que perdera. O tempo passou e a última notícia que tive foi que ela anda apaixonada. Reencontrou na última viagem de férias um amigo de uma prima que conhecera na adolescência e só fala no rapaz, desde então. Também não me pergunte se ele veio a cavalo ao encontro dela, mas acho que, se não, ela desistiu de parte de sonho. Não dá pra se querer tudo, também. Né?!

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Menos um apaixonado

Outro dia escrevi que o futebol estava sem graça. Vejo o esporte bretão como um quadro que outrora já fora uma obra de arte e hoje está feio, desafeiçoado, sem sentido. Falo de cátedra, como um apaixonado meio bobo que compra camisa, vai aos estádios, é sócio do time, acompanha, vibra, torce, apoia. Vou pro alambrado pra tentar ficar mais perto da bola. Compro jornais só pela página de esportes, e vou direto a ela para ver as notícias do meu time. Pela escassez de tempo, muitas vezes nem leio sobre política ou cultura. É assim desde 1988, quando fui pela primeira vez ao Eládio de Barros Carvalho levado pelo meu querido pai, alvirrubro fiel de quem herdei esse verdadeiro fetiche. Enfim, amo o vermelho e branco de uma forma incondicional e inexplicável. Já viajei pra ver o Timbu de Rosa e Silva ao Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio Grande do Norte, Santa Cruz do Capibaribe. Em alguns desses lugares mal andei nas cidades. Era aeroporto-hotel-estádio. É uma coisa que não tem medida, não tem explicação, nem nunca terá, não há justificativas pra isso.

Hoje foi um sábado, dia de jogo. Tinha tudo para ser um jogo como outro, como tantos outros Náutico x Central que já fui na vida. Por baixo, pelos meus cálculos, já fui a uns vinte. Marquei com os amigos, tirei a camisa da gaveta e saí de casa certo que iria descontrair, dar boas risadas, festejar. Sou de um tempo em que futebol era diversão, que estádio era local de fazer amigos, seja alvirrubro, seja rival. Mas rival de que, afinal?! Rivais porque tem que ter alguém do outro lado durante 90 minutos. Nesse tempo deixamos de ser amigos e passamos a ser colegas. E só. Depois voltamos a ser amigos.

Eram 18:40 e eu estava na padaria que fica em frente ao estádio, ponto de encontro onde sempre vou. De repente saltam de um ônibus, sem qualquer motivo aparente, homens vestidos de preto, armados com cacetetes e armas de fogo e uma batalha começa sem que eu entendesse nada daquilo. Talvez por trinta segundos (ou menos), não fui atingido. Por um momento fiquei atônito, sem saber o que estava acontecendo. Depois recebi a notícia que se tratava de um ônibus onde estavam integrantes de uma torcida organizada do Sport que passava em frente naquele instante. Gritos. Correria. Tiros. Um corpo estendido no chão. Sangue.

Começam a caça e as bruxas são sempre as mesmas.
A Polícia Militar tem culpa? O efetivo era suficiente para garantir a segurança dos 9.000 torcedores no jogo do Náutico?!
A Polícia Civil tem culpa? Homens armados fazendo a segurança particular, como as várias espécies de milícia (e, até onde eu sei, "constituir milícia particular com a finalidade de praticar crimes", é uma conduta tipificada no Código Penal, em seu art. 288-A, cuja pena é de reclusão de 4 a 8 anos) que hoje existe de maneira tolerada e comum em Recife. Verdadeiros esquadrões de organização paramilitar, que agem à revelia dessa autoridade.
A Federação Pernambucana tem culpa? Esse jogo seria amanhã, mas foi transferido pra hoje e ficou um vazio de uma hora entre o término do jogo na Ilha do Retiro e o início do jogo nos Aflitos, tempo suficiente para o encontro das duas gangues.

Torcida organizada tem que acabar. Não me venha com argumentos que fazem uma festa bonita, que animam, blá, blá, blá. Isso é uma ilação que satisfaz a poucos em detrimento da paz pública de todos, bem jurídico dos mais importantes. É muito problema pra apenas 90 minutos (e às vezes nem isso) de alegria. É como um aluno que sempre atrapalha, compromete toda a sala e só tira notas baixas, mas na hora do recreio diverte a todos. Isso é incoerente e a permanência desses vândalos é insustentável e inconsequente.

O Sport empatou e foi eliminado da Copa do Nordeste. O Náutico perdeu o jogo. Lucas teve perto de perder a vida aos 19 anos. Eu perdi o gosto de ir a campo e vou rever seriamente se continuarei a me arriscar em levar um tiro na entrada - ou, como já aconteceu, cair um refletor na minha cabeça, ou cair no fosso - e também morrer. Isso tudo se passou aqui em Pernambuco, nos três maiores estádios. Poderia ser eu e esse texto sequer estaria aqui agora. Poderia ser você que, mesmo sem ir à estádios, passava na Av. Rosa e Silva naquele fatídico instante. Mas, quando uma vida é ameaçada assim, o tempo passa e em poucos dias o sofrimento da família é o único herdeiro desse espólio chamado "Tragédias do Futebol". Mais uma triste página desse livro difícil de ler e, por muito pouco, seria menos uma vida. Mais um inconformado. Menos um apaixonado.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Pai e filho

Começou com 5 visitas diárias, acho que dos amigos que estavam na mesa quando eu falei despretensiosamente. Depois 15, 50, 150. Chegou um dia que o servidor acusou mais de 2.000, do mundo quase todo. Não imagino um chinês lendo essas palavras! Caramba! Mas ele há de entender, como diz o Arthur da Távola, "quem pode afirmar que, durante o sono, fluidos nossos não saem para buscar sintomas com pessoas distantes, com amigos a quem não vemos, com amores latentes?". É, poesia é um dialeto, de uma comunidade de loucos. Os poetas são todos loucos. Poesia é uma forma de loucura. Veja só: o Fernando Pessoa diz "-Tudo, menos ter razão". Se ele fosse normal diria o contrário, "Tudo, menos não ter razão!". Li isso no Rubem Alves. Isso que normalmente damos o nome de razão são máscaras, mentiras, equívocos, farsas. A nossa verdade anda sempre enterrada. E é.

Nesse espaço, que é a janela lateral do meu quarto de dormir, de onde vejo o mundo lá fora e tento traduzir em palavras, eu me mostro por completo. Lendo isso aqui dá pra conhecer, talvez, quem eu sou. Ou, ao menos, quem eu queria ser! O rafadesapatonovo tem esse nome não por acaso, de sapato novo porque assim passei a caminhar de uns tempos pra sempre. Já até escrevi explicando esse tema.

Hoje recebi a ligação da Editora, avisando que a burocracia do meu livro estava resolvida. Pronto, nasci como escritor. Foi como receber a notícia da minha mulher (que nem tenho ainda!), de que estava grávida do meu primeiro filho (que tanto quero ter!). Livros são filhos que educamos antes de nascer. Ensinamos o que queríamos que as coisas fossem. Como eu queria que o mundo fosse mais compassivo, com menos valores materiais, mais humano. Em tempo: somos seres humanos e quase nunca humanos! Ainda há tanta gente na rua, tanta fome, tanta dor, ódio, solidão, mentira, ambição. Não existe mais contemplação, o sol vem e se põe e poucos o veem. Não existe mais afeto, palavras doces, elogios. Ligações pra dizer nada. Sinceridade e honestidade pra dizer tudo. Respeito no começo, e no meio, e no fim. Não existe.

Quero um filho assim, humano, mesmo sem ser humano. Que respeite as filhas dos outros, a família dos outros. Que adentre as casas pela porta da frente, que reconheça a história das pessoas, com seus medos, sentimentos, e respeite os sonhos delas. Nunca escreverei pra dizer que algo não vale a pena. Tem coisa mais deselegante que um filho desbocado e mal educado em um jantar de família?! Depois de crescido dificilmente se educa alguém e, nesse sentido, os livros já nascem grandes.

De gestos pequenos é feita a vida. Um abraço forte, uma lembrança boa, um sorriso à toa. Tenho tudo isso registrado em lugar especial, que se tornará papel, útil para eterniza-lo, em breve. Muito em breve.

sábado, 19 de janeiro de 2013

O velho (e bom) continente!

Milhões de anos luz serão incapazes de curar o que alguns primeiros segundos desse ano me representaram. Volto da Europa e, como se tivesse acordado pra 2013 só hoje, desperto de um sonho que começou ainda no ano passado. Começou comigo ainda acordado e irá perdurar por muito tempo, tenho certeza, mesmo até depois de já ter levantando.

Madrid é uma cidade como nenhuma outra. Elegante e viva, urbana e pulsante. Foi o reveillon mais divertido da minha vida! O Porto é charmoso, tem o céu lindo, talvez o mais bonito que já vi. Portugal e Espanha são dois paísinhos danados! É uma pena não mostrar aqui tudo que os meus olhos viram, guardo mais imagens na memória do que nos registros da máquina. Acho até melhor assim, pois não corro o risco de perde-las. A Espanha tava linda, soberba campeã mundial, emanando bons ares. Portugal é um charme, um segredo guardado a sete chaves, um bom vinho a ser tomado quase que a doses homeopáticas. Andar por lá fez bem à minha alma.

No entanto, o melhor da viagem foram os amigos que fiz. Alguns talvez nem os veja mais nessa vida (há coisa mais incerta do que essa vida?!), mas que me ensinaram muita coisa e adoro quem me ensina alguma coisa. Aprendi demais nesses dias e isso me fez mais humano. Fui recebido e tratado como poucas vezes! Tive uma recepção e uma despedida de quem merece alguma coisa, sem ter feito nada! Descobri que respeito e caráter são fermento e que a paixão é um bolo que precisa deles pra crescer, outro jeito não há. Como já é grande a minha admiração! É, "eu tive que ir embora, mesmo querendo ficar..."

Luísa Silva, cruzo esse oceano atlântico quantas vezes for possível só pra ver você sorrindo ao vivo. Marta Alves, Bia Alves e Ana Rita Costa, com vocês não tem explicação, obrigado por tudo! Amo vocês!