terça-feira, 30 de outubro de 2012

Vitória do caráter

Eu sei que você já leu algumas histórias surpreendentes ao longo da sua vida, independente de quantos anos ela tenha. Sei também que, para cada referencial, existem importâncias diferentes. Um testemunho que pode parecer comum para mim, soa surreal pra você, ou vice-versa. A verdade é que "perder o idealismo com a idade é falta de caráter"*. E ser um idealista tem um preço que, no meu caso, muitas vezes acaba sendo muito alto.

Digo isso porque o Direito Criminal começou a gostar de mim e, apenas um tempo depois, passou a ser correspondido. Na verdade, comecei a perceber que isso faria (e espero que faça) parte da minha vida pelo tempo que ela perdurar, quando me vi diante de uma realidade latente, como uma panela que ferve a 150°C e é tocada sem a expectativa que pode queimar. Ser defensor público me deu indignação suficiente para saber que sensibilidade e razão devem sempre caminhar como par perfeito. Eu sei o que acontece nos calabouços dos distritos policiais pelo Brasil afora. É um ledo engano achar que 1º de abril de 1964 é uma data há 48 anos atrás. Os Atos Institucionais que a ditadura pôs em prática, suprimindo as liberdades individuais e criando um código de processo militar que prendia e encarcerava (quando não fazia desaparecer) pessoas suspeitas é reproduzido de maneira cruel nos nossos dias e, pior, de maneira atroz, bárbara, maligna e perversa. A covardia de policiais e agentes é inversamente prorcional ao meu receio de escrever palavras como essas, e diretamente proporcional ao medo que eles tem de me enfrentar em um tribunal. De igual pra igual esses covardes não tem coragem de olhar no meu olho, como dizem ter quando levam inocentes às salas de investigação ou de reconhecimento e deles arrancam confissões ao preço de não deixarem impunes infrações que não tiveram a capacidade de previnir ou resolver.

Ao enxergar realidades como essa, não se pode subsistir a pudícia. Falo essas coisas sem medo de deixar de ser leve. Não tenho medo. Disse e repito a quem tiver ouvidos para ouvir e olhos para ler, que meu receio em enfrentar esse sistema corrupto e sanguinolento é diretamente proporcional à covardia dele. E melhor: não estou sozinho.

Acabo de ler uma história surpreendente. Aliás, algumas histórias, no plural, todas surpreendentes. Chegou até a minha pessoa, como um sopro qual um canto de um pássaro solto e livre, esse livro que me fez escrever esse post. "desCasos - uma advogada às voltas com o direito dos excluídos"** é um daqueles livros que devem ser lidos agora, sem deixar pra amanhã. Devorei-o em exatos 32 minutos, não por ser pequeno (o que de fato é, poderia e deveria ser maior!), mas por ser delicioso. A sua escritora, a Alexandra Lebelson Szafir, é defensora pública e igualmente irriquieta com as incoerências do sistema brasileiro. O que a torna ainda mais precisa (em ambos os sentidos que precisa possa receber) é que por motivos de uma ELA (esclerose lateral amiotrófica) ela teve afetados os movimentos das pernas, depois das mãos, braços, costas e, finalmente, deglutição e fala - o que a impossibilitou de escrever e até ditar para que alguém o fizesse. Suas ideias e pensamentos brilhantes presos à sua mente puderam ser lidos por mim (e espero, do fundo da minha alma, que por você também) por um programa de computador criado por uma fonoaudióloga que funciona como uma webcam que focaliza o seu rosto e se fixa no ponto central dele, que passa a comandar o mouse, movendo-se na tela de acordo com os movimentos do nariz - o que a levou a dizer que "começou a meter o nariz onde não foi chamada", em tom leve e brilhante. Fantástico né?! Perfeita.

Que bom que existem pessoas como Alexandra no mundo. Citando Edmund Burke - o que ela também faz - "ninguém comete erro maior do que não fazer nada porque só pode fazer um pouco". Muito ou pouco espero jamais deixar de fazer a minha parte. Idealizo coisas grandiosas. No amor, na profissão, na vida. E perder esse idealismo me faria um derrotado de alma. Um perdedor de caráter.

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*Frase do Dr. Ranulfo de Melo Freire, citada no livro "desCasos - uma advogada às voltas com o direito do excluídos", livro esse de leitura OBRIGATÓRIA para qualquer ser humano - seja indiferente ou preocupado com a humanidade, presente e futura.

** SZAFIR, Alexandra Lebelson. Descasos: uma advogada às voltas com o direito dos excluídos. São Paulo: Saraiva, 2010.