quarta-feira, 20 de março de 2013

O que vale é o sentimento, e o amor que a gente tem no coração...




Chovia um pouco e naquela fria tarde de sexta-feira, como em todas as outras, fui almoçar num restaurante perto de casa. Curitiba enfrentava um inverno forte em 2009 e poucas coisas na vida são mais solitárias do que frio e chuva simultâneos. Nesses dias, o Tropo Buono era o meu lugar favorito. Além da culinária caseira e acolhedora, Lala e Cris sempre me tratavam tão bem que, por vezes, cheguei a ir pra lá só pra conversar e tomar um café. É o único restaurante que eu conheço que tem biblioteca, gente inteligente e boa comida. Naquele dia fui tarde, eram umas duas e meia. Entrei com pressa e sentei de costas pra uma única mesa ocupada por três pessoas.

Lala era Laís Pires, conhecida produtora artística carioca que, assim como eu, foi parar no Paraná por essas coisas que quase nunca entendemos bem. Falávamos sempre de música, arte, cultura e da cena popular brasileira. Ela, mais do que eu, tinha muita história pra contar. Tinha sido responsável por levar vários artistas aos Estados Unidos, já havia excursionado e produzido Leny Andrade, Beth Carvalho e tantos outros nomes. Lala, ao saber que eu era pernambucano, sempre me falava do Romero Lubambo, violonista cuja família morava em Recife, quando engatamos a primeira conversa e nunca mais paramos. Falando dela me dá vontade de chorar, de tanto carinho e saudade.

“- Rafa, vem cá. Quero te apresentar um amigo meu”, veio ela até minha mesa e me puxou, ao ver que eu já tinha terminado o almoço. “Então, esse aqui é o Emílio... Rafa, Emílio. Emílio, Rafa”. Ah, por isso! Eu bem conhecia aquela voz que ria e falava na outra mesa, mas não seria indiscreto de olhar pra confirmar. Desde criança eu já era fã de Emílio Santiago desde que ouvi as famosas Aquarelas. Já tinha ido a um show dele no Teatro Castro Alves em Salvador e sabia um pouco da sua história também. Cumprimentei-o com uma boa tarde e saudei os demais que estavam na mesa.
“-Olá, Emílio. É um prazer, uma honra. A Lala já tinha me falado de você”.
“-Ah, é?! Mas com esse sotaque, você não é daqui, é?! Lala, pega um café pro Rafa!”, tratou logo de me deixar à vontade e pediu pro Soca, secretário dele, puxar uma cadeira. “Obrigado” – agradeci e sentei ali por umas duas horas.

Emílio tinha ido fazer um show com a Áurea Martins no Teatro da Caixa. Eram três dias de espetáculo, sexta, sábado e domingo. E o carinho que ele tinha por Lala era uma coisa linda de se ver. Ele tinha disso: se gostasse de alguém, elogiava em público até deixar com vergonha. Outro dia, em um show em Recife, me apresentou ao Lenine e foi rasgando elogios sobre a minha atuação profissional, de coisas que eu nem imaginava que sabia de mim. Acho que foi uma das vezes que fiquei mais vaidoso na vida. O normal seria o inverso! Mas era assim também que falava da Lala. Não era pra menos, ela o levou pela primeira vez à Nova York, lugar que, de tanto gostar, até apartamento acabou comprando por lá tempos depois. E era bonito de se ver como ele gostava dela. Não pude ir na sexta por compromissos acadêmicos, mas como ele me convidou para os outros dias, apareci no sábado e no domingo. Depois fomos todos a um bistrô e, quando voltei pra deixa-lo no hotel, recebi um DVD que já estava dedicado. Tenho guardado aquele momento tão vivo que parece que foi ontem.

De temperamento forte, mas capaz de uma generosidade rara, Emílio era capaz muitas vezes de adivinhar a melhor hora das coisas. Não nos falávamos há uns três meses quando, certa vez, me ligou umas 11 horas da noite: “-Pernambuquinho, como você tá? Como andam as coisas por aí? Vi que o tempo em Curitiba está frio, se cuida hein!”. E estava mesmo frio, uns 4 graus. E aquela lembrança dele, em breves dois minutos de conversa, foi certeira. Outra vez ele foi fazer um show em Porto Alegre e antes passou em Curitiba. Peguei-o no aeroporto e fomos almoçar em Santa Felicidade. Quando estacionei o carro, veio um garotinho pedir comida pra família e, depois de ajuda-lo, começou a me contar uma história. Disse que um dia foi fazer compras em um supermercado no Rio e na saída uma criança pediu algo pra comer. Aquilo mexeu com os brios dele de tal forma que retornou com o moleque ao supermercado, encheu um carrinho com caixas de leite e outras coisas e o colocou num táxi para levar até em casa, provando existir a sensibilidade no homem como existia no intérprete. Contando-me isso foi às lágrimas, e me levou junto também. Dentre tantas outras milhares histórias, que não caberiam em um livro.

Outra vez, depois de um show, a produção do evento fez uma passagem pra chegar até o carro que evitava o público. Ele soube e fez o inverso, procurou a saída que passava pelo público. Lembro-me de ter tirado pra lá de cem fotos. Tinha adolescente de 14 e idoso de 70 anos cantando e dizendo admira-lo. Quem não deve ter gostado foi o motorista, já que precisou enfrentar a multidão pra que entrássemos no carro...
Emilio tinha o jeito do Rio, o jeito da noite carioca, de Copacabana. Já me confessou que só moraria em outro lugar que não Botafogo, onde morava. E era Copacabana, mas tinha que ser na Atlântica. Senão nada feito. Pra mim, um dos shows mais clássicos e épicos da história da música brasileira é o dele no Copacabana Palace. Não tem nada mais carioca, nada mais brasileiro do que Emílio Santiago cantando em Copacabana! Lembro ainda que, por motivos profissionais, só pude chegar à São Paulo na tarde da gravação do último DVD dele, o “Só Danço Samba”. Fui direto pro Citibank Hall, mas nem me preocupei quanto a perder alguma coisa. Com ele era tudo ao vivo, na hora. Não tinha cerimônia de gravar e refazer não. Conversando com o Zé Milton (que dirigiu e produziu aquele show) já depois no camarim, perguntei se tudo tinha ido bem. Ele disse, sorrindo: “Com esse aí? Já tá pronto!”. Almoçamos na tarde seguinte no Copan e, brincando, disse que eu achava que precisaria refazer a faixa 5 (não sabia nem qual era a faixa 5!). E ele, de pronto, perguntou se a gravação do DVD que eu tinha ido tinha sido o dele! Tinha uma alma incomum, de artista. Os olhos dele brilhavam pelo palco, e ele sempre brilhava no palco. O The New York Times o elegeu como uma das maiores vozes de todos os tempos, ao ponto de dizer que a voz de Emílio era mais suave e profunda que a de Nat King Cole. Imagina! A coroação de uma carreira trilhada passo a passo, desde os festivais de música e do programa de Flávio Cavalcanti até os críticos norte-americanos e o Grammy Latino. Uma história maiúscula, do tamanho do seu talento!

Enfim, em outro patamar ele sempre esteve, aquela voz nunca podia ser desse mundo. Poucas coisas nessa vida inexplicável são suficientes pra mim e ter convivido e ser amigo do Emílio é uma delas. Guardo, como se gravado estivesse, sua voz há 19 dias atrás no telefone: "A vida é bela, Rafa. Só nos resta viver!". A sensação de perda é tão grande que não consigo expressar em palavras. Aliás, não conseguirei expressar em nada. Nem em tantas palavras, nem em meias palavras. Anoiteceu, Emílio. Sem você por aqui, agora olho pro céu e vejo como é bom ver você entre as estrelas na escuridão. Sua voz inconfundível agora é ouvida pelos anjos, que esperavam você voltar. Hoje o céu é Saigon.
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Emílio Vitalino Santiago, saudades eternas.
* 06/12/1946
† 20/03/2013

quarta-feira, 6 de março de 2013

Regra e exceção

Na exceção está a graça da vida. Escrevo pra todos e quero ser lido por muita gente, mesmo não sendo essa a minha maior intenção quando me ponho a discorrer sobre a vida. Confesso que alguns me leem como as multidões leem as estrelas, de modo astrológico, e não como alguns letrados que a veem de um modo astronômico.
 

Para não repetir os monossílabos de tantos livros expostos por aí – acho que por ter sido alfabetizado de maneira popular e muito pouco erudita – prefiro as exceções. Explico: acho que alunos que sentaram nas primeiras filas da sala de aula gostam menos de mim do que aqueles do fundo. Ali é que se vivia intensamente o dia a dia escolar, a malícia do mundo, a verdade das coisas. Líamos (e aqui me coloco entre eles) o bê-á-bá mais leve, éramos sempre mais sutis nas perguntas, íamos além do que se queria indagar. Nem sempre a pergunta era só relativa à matéria – o que chegava a deixar o professor sem resposta, já que este às vezes pouco sabia além daquela matéria que lecionava, ou do assunto que expunha. Coincidência, ou não, foram esses meus amigos que se tornaram grandes profissionais, pois em certo momento o mundo exigiu menos disciplina e mais experimento. Ah, mas todos – sem exceção – se deram bem na vida (mesmo sem saber ao certo o que é esse “bem”, repito o que os pais falam quando se referem a nós).


Gosto também das exceções no amor. Lembro bem de um exemplo que sempre me vem à mente quando falo disso. Lucila sempre esperou de maneira submissa a chegada do seu grande amor e tinha a convicção que ele chegaria de repente. Esse era o seu grande sonho: estar caminhando na praça, junto à sua amiga, e ser surpreendida com um cortejo do seu amado, que a colocaria em cima do seu cavalo e a levaria pra bem longe dali. Tomariam um café, ele a falaria coisas bonitas e a deixaria em casa, incólume, com encontro marcado para o outro dia e a promessa que seriam felizes para sempre. A mãe dela pensava diferente: queria que se casasse com o Quinzinho, filho do Joaquim da mercearia. Esse sim era um bom partido. Possuía estirpe, curso de datilografia, estava prestes a terminar o curso de Licenciatura em Geografia e era até, digamos, bonito (essa é a pior parte da descrição, com um teor extra de piedade, pra não dizer também que o rapaz era só esforçado). Lucila nunca se viu casada com ele, mas o tempo passava e nada do cavalo, da fuga, das promessas. Já prestes a largar o sonho pela realidade por conta da comodidade (como se fazem essas trocas por aí!), ela decidiu que não se curvaria ao sono do destino que insistia em esconder o seu amado e esperaria o tempo que fosse. Para ela, nada seria mais triste do que estar com o Quinzinho quando o grande amor da sua vida aparecesse e não a pudesse levar consigo. “-Deixa de bobagem, menina. Só você que não vê que a vida é aqui!” diziam alguns, em tom desanimador. “- Case-se com ele, serão felizes, ele a ama tanto que fará você sentir o mesmo por ele, questão de tempo...” reforçavam outros ainda mais conformados com a dinâmica da vida. Lucila bateu o pé. Como uma exceção (e eu gosto das exceções, repito), insistiu e viu o Quinzinho se formar, arranjar um emprego, se casar com uma amiga de infância e ter com ela três filhos em quatro anos. Dizem até que a garota casou grávida, de tanto que queria se casar com aquele partido. Lucila preferiu ficar só, a expectativa daquele amor distante e difícil era melhor do que a realidade morna que perdera. O tempo passou e a última notícia que tive foi que ela anda apaixonada. Reencontrou na última viagem de férias um amigo de uma prima que conhecera na adolescência e só fala no rapaz, desde então. Também não me pergunte se ele veio a cavalo ao encontro dela, mas acho que, se não, ela desistiu de parte de sonho. Não dá pra se querer tudo, também. Né?!