quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Sobre simplicidade e sabedoria

Diz o Tao-Te-Ching: "Na busca do conhecimento a cada dia se soma uma coisa. Na busca da sabedoria a cada dia se diminui uma coisa."
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Sabedoria é a arte de degustar. Sobre a sabedoria Nietzsche diz o seguinte: "A palavra grega que designa o sábio se prende, etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphus, o homem do gosto mais apurado." A sabedoria é, assim, a arte de degustar, distinguir, discernir. O homem do saberes, diante da multiplicidade, 'precipita-se sobre tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço.' Mas o sábio está à procura das 'coisas dignas de serem conhecidas'. Imagine um bufê: sobre a mesa enorme da multiplicidade, uma infinidade de pratos. O homem dos saberes, fascinado pelos pratos, se atira sobre eles: quer comer tudo. O sábio, ao contrário, para e pergunta ao seu corpo: 'De toda essa multiplicidade, qual é o prato que vai lhe dar prazer e alegria?' E assim, depois de meditar, escolhe um...

A sabedoria é a arte de reconhecer e degustar a alegria. Nascemos para a alegria. Não só nós. Diz Bachelard que o universo inteiro tem um destino de felicidade.

O Vinícius escreveu um lindo poema com o título de "Resta..." Já velho, tendo andado pelo mundo da multiplicidade, ele olha para trás e vê o que restou: o que valeu a pena. 'Resta esse coração queimando como um círio numa catedral em ruínas...' 'Resta essa capacidade de ternura...' 'Resta esse antigo respeito pela noite...' 'Resta essa vontade de chorar diante da beleza...'. Vinícius vai, assim, contando as vivências que lhe deram alegria. Foram elas que restaram.

As coisas que restam sobrevivem num lugar da alma que se chama saudade. A saudade é o bolso onde a alma guarda aquilo que ela provou e aprovou. Aprovadas foram as experiências que deram alegria. O que valeu a pena está destinado à eternidade. A saudade é o rosto da eternidade refletido no rio do tempo. É para isso que necessitamos dos deuses, para que o rio do tempo seja circular: 'Lança o teu pão sobre as águas porque depois de muitos dias o encontrarás...' Oramos para que aquilo que se perdeu no passado nos seja devolvido no futuro. Acho que Deus não se incomodaria se nós o chamássemos de Eterno Retorno: pois é só isso que pedimos dele, que as coisas da saudade retornem.
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Aí eu consulto o meu bolso da saudade. Lá se encontram pedaços do meu corpo, alegrias. Observo atentamente, e nada encontro que tenha brilho no mundo da multiplicidade. São coisas pequenas, que nem foram notadas por outras pessoas: cenas, quadros...

Diz Guimarães Rosa que 'felicidade só em raros momentos de distração...' Certo. Ela vem quando não se espera, em lugares que não se imagina. Dito por Jesus: 'É como o vento: sopra onde quer, não sabes donde vem nem para onde vai...' Sabedoria é a arte de provar e degustar a alegria, quando ela vem. Mas só dominam essa arte aqueles que têm a graça da simplicidade. Porque a alegria só mora nas coisas simples.


(Rubem Alves, "Concerto para corpo e alma", pg. 09.)

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