quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Repara se já viu poesia como esta?!

Hoje fui tomado por um saudosismo sem tamanho. Sempre pensei que a idade não fosse passar e que envelhecer era um evento mais psicológico do que físico. Não mudei de conceito, mas hoje percebo a saudade deitar no meu peito como se tivesse um sono pesado e interminável. Começo a vislumbrar os fatos passados com menor acuidade e alguns acontecimentos ficam como um alguém que acena do cais e eu vou partindo, em um navio que precisa atracar em outros portos.

Se fatiar a vida em pedaços pode ser bom, pra mim hoje foi melancólico, como o olhar fixo nas nuvens cinzentas de uma tarde chuvosa. Dos lugares por onde andei e de tudo que meu olhos puderam contemplar. Tem registros que foram feitos apenas pela mente, máquina digital e câmeras no celular são pontualmente tão recentes! Pessoas inteligentes me fazem falta. Receber ligações no meio da noite de quem menos se espera faz falta. Pegar uma muda de roupa e a escova de dente, entrar num ônibus e viajar pra encontrar alguém faz falta. Não sentir o peso de tanta responsabilidade que eu mesmo me acrescento todo dia faz uma falta danada. E era sobre isso que eu queria falar.

Certa vez conheci uma senhorinha que distribuía flores. Hoje vejo que este é um ofício que não é pra todos. Por mais que se esgotem campanhas de gentileza, que os poetas se esforcem pra disseminá-la e que todo dia fosse 31 de dezembro, não sei se alguém pode fazer melhor aquilo na terra do que aquela mulher. Aquela flor vinha acompanhada de candura, o jeito como ela pegava para entregar e a singeleza e simplicidade daquele ato tornava aquilo gigante, grande demais pra qualquer ser vivente!

Me senti saudoso hoje porque não é simples pensar que as próximas primaveras podem não ser tão boas quanto as últimas. E se forem?! E se não forem?! E se as pessoas que cruzarem meu caminho não forem tão interessantes quanto aquelas que ficaram nele? E se, se, se...

A Adélia Prado é fantástica. Ela fala e eu entendo, sempre. Queria poder dizer isso a ela algum dia. Mas queria dizer sutilmente, da mesma forma como ela fala e eu a entendo. É uma poesia com cheiro, com gosto, com tudo que eu tô sentindo agora. Tem um livro dela chamado "Filandras", que é assim. Tem um trecho que faço questão que você leia:

"(...) Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer." (Extraído do livro "Filandras", Editora Record - Rio de Janeiro, 2001, pág. 119.)

 Leio Adélia Prado e volto a sonhar. Venham cá! Reparem se já viu poesia como esta?!

2 comentários:

  1. que lindo esse trecho que vc escolheu para compartilhar conosco... muito bom mesmo. :)

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  2. Caramba! Sinto falta de tanta coisa nessa vida..é que eu morro de saudade! E a cada pessoa que passa - assim como os portos no meio do caminho -, morre um pedaço de mim. Mas, eventualmente, algumas passam e resolvem ficar.. e reavivam aquele lugar morto do meu coração, que fica cheio de flores, de todas as cores. Repara se já viu uma coisa dessas?

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