segunda-feira, 18 de junho de 2012

O Senhor deu, o Senhor tirou.

Era uma noite chuvosa e novembro tava perto de terminar. Eu só tinha 17 anos e estava, literalmente, às vésperas de prestar o meu primeiro vestibular pra Direito. Como a prova era num domingo e eu ainda não entendia muito a seriedade daquilo, minha mãe me disse pra dormir cedo e evitar qualquer atividade que me deixasse cansado, essas coisas de mãe. Fui deitar, sem dar muita bola pra proximidade do primeiro grande desafio que a vida me trazia. Meu telefone toca. "Alô, é Rafael? Rafael Fonseca?". "-É sim", respondi, meio acordado, e inteiro sem saber quem era. "-Quem é?". "Cara, não sei se você me conhece, mas quem me falou de você e me deu teu número foi Lula, baixista. Aqui quem fala é Pedro, Pedrinho." Aquela voz era inconfundível. Melhor, aquele jeito de falar era inconfundível. Às vezes meio gago, ou querendo atropelar as palavras pra dizer logo o que queria, ou às vezes repetindo a mesma coisa para em seguida ouvir o que queria. A verdade é que eu sabia quem era Pedrinho, mas até ali eu não sabia que ele sabia quem eu era. Isso porque eu já o tinha visto nos palcos do Recifeliz, nos trios elétricos da Marcha, e gostava demais do jeito que ele fazia aquilo. Era diferente, efusivo, instigante, inquieto, ele sempre foi diferente. Eu era um baterista que, apesar da pouca idade, tinha alguns anos de estudo, mas havia tocado com quase ninguém e o que o levou a fazer aquela ligação foram os nossos amigos músicos em comum. "-Fala, Pedrinho, tudo certo cara, sei quem você é. O que é que manda?!" Perguntei, sem ter a menor noção do motivo do contato - àquela hora, num sábado. Naquele instante esqueci do vestibular, da hora, do sono, da minha mãe e das suas recomendações - doido pra que fosse um convite pra tocar com ele. "Tô precisando de um baterista e me indicaram você, tá afim de tocar comigo hoje?! É mole. Será na Imbiribeira, coisa rápida, passo pra te pegar em 15 minutos". A essa altura eu já tava acordado, de pé, com uma porta do guarda-roupa aberta. "-Tocar contigo? Mas... como é, assim... sem ensaio?" "É. Me diz o nome da tua rua e o número do prédio, é perto da onde?". Isso era a cara dele. Não sabia onde eu estava e dizia que chegava em 15 min., ou ainda nem se importava com qualquer empecilho que atravessasse o que vinha naquela cabeça. O final dessa história - que na verdade era só o começo de tudo - foi que ele veio, falou com minha mãe que, mesmo reticente, liberou com a condição de voltar cedo por causa da prova (!) e viramos amigos. Isso mesmo, amigos.

Naquela época ele ainda era seminarista, mas a verdade é que sempre fomos tão amigos que sua autoridade sobre a minha vida decorria de admiração e carinho, e nunca de submissão, imposição ou medo. Certa vez fomos para Timbaúba, cidade a 100 km de Recife, tocar por lá. Junto conosco foi Bosco, então goleiro do Sport Recife, pra dar um testemunho para um público que esperava ansioso, ligando quase que de minuto em minuto querendo saber em que altura da estrada nós estávamos. Na ida o carro quebrou, na chegada quase não conseguimos passar entre o carro de som e a multidão e na volta foram só risos, alegria e certeza que lembraríamos daqueles momentos para sempre. Contando aqui, assim, parece que vivi tudo isso ontem, mesmo passados 12 anos.

Desde aquela ligação, mesmo com a pouca idade, algo me dizia que o sentimento que eu teria por aquele cara teria um gosto de eternidade. Eu provei daquilo naquela noite. Não sei, era uma simbiose que dispensava ensaios, acertos, previsões. Antes de ir morar no Sul, recebi a visita dele. Dos meus amigos, foi o último a se despedir de mim, antes que eu fosse morar em Curitiba. Que ironia, sem se despedir, foi o primeiro deles a ir embora, ficar ao lado do Pai. Nunca me esquecerei do que me disse naquela noite: "Vai lá, Noelzinho (como sempre carinhosamente me chamou). Vai viver, cara, vamos viver!".

Vamos sim, Pedrinho. E eu vou meu amigo, irmão, pastor, conselheiro, fiel escudeiro e confidente. Sempre tão firme, honesto consigo próprio, transparente, autêntico. Esse acidente pode ter sido forte pra lhe arrancar dessa vida, mas mais forte é o Pai, é Deus que a deu e a tirou. Eternamente, Bendito seja o nome do Senhor.

2 comentários:

  1. Bonito texto, Noel.

    Conheci muito pouco Pedrinho, mas o suficiente pra perceber que era o tipo de cara "nota 1000".

    Saudade de você, monstrão.

    Igor

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